terça-feira, 13 de abril de 2021

O CONSUMIDOR ENTE HIPERVULNERÁVEL DA SOCIEDADE DIGITAL?

 (In Portal do PROCON RS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, hoje, 13 de Abril de 2021, publicado)

 

As mutações que a cada passo se observam no universo digital operam uma radical reconfiguração dos quadros em que decorre o dia-a-dia dos cidadãos: as inovações concorrem para que o perfil da actividade económica se transmude. E o direito privado, como que tocado pelo seu sortilégio, se adapte e ajuste. E o legislador se “precipite” – quantas vezes com um enorme compasso de espera, passe o paradoxo - a regular o que a factualidade subjacente vai sulcando no quotidiano.

  Os quadros que ora se apresentam, nos diferentes segmentos do mercado, transfiguram-se nas relações entre mercador e consumidor.

  As inovações proporcionam-lhe, é facto, um mais vasto leque de oportunidades e uma mais ampla oferta de produtos e serviços.

  A recolha e o tratamento de dados subjacentes, a que se associam a análise do comportamento dos consumidores e dos seus preconceitos cognitivos, constituem base para o desencadeamento de acções que tendem a influenciá-los em decisões que contrariarão decerto o superior interesse de todos e cada um.

  A eficácia das actuais regras de protecção em ambiente digital acham-se naturalmente comprometidas, nomeadamente no que se refere às práticas comerciais desviantes, que ocorrem a cada passo.

  Em simultaneidade, os contactos daí emergentes podem dificultar uma escolha esclarecida e a salvaguarda dos interesses económicos dos consumidores.

  As práticas que se vêm adoptando envolvem o emprego de padrões «obscuros»: as de personalização frequentemente baseadas em

  • definição de perfis,

• publicidade oculta,

• fraudes,

• informação falsa ou enganosa e

• manipulação das avaliações dos consumidores.

 Lavrador Pires revelava, há dias, no diário ´as beiras’, editado em Coimbra, algo de que nem sempre se tem clara representação:

 “O ‘homem médio’ detém mais de 30 contas agregadas aos artefactos de comunicação de uso quotidiano, v. g., correio electrónico, twitter, facebook, instagram, telegram e um sem-número de credenciais de acesso a sites que determinam a transferência de dados com o seu timbre, o seu cunho de pessoalidade.

 E o resultado, por oposição ou em complemento ao indivíduo, é o surgimento do ‘divíduo’ ante as refracções dos traços de personalidade (e dos que os dados a esse título gerados contemplam) que ali se imprimem.

 Cada um dos artefactos é um canal de comunicação interactiva com um objecto sem face, o programa / algoritmo, a que se comete zele por e registe os impulsos, tempos e “percursos” assumidos “dividualmente” no universo digital.

 Com a multiplicidade de “jornadas digitais”, como o assinala, os indivíduos transmudam-se em “divíduos”, na titularidade de identidades digitais múltiplas, “partidas”, “divisas” ou divididas.”

 Imerso na economia digital, o consumidor com o que impõe aos parlamentares europeus se desdobrem em cautelas logrando, mercê de distintas intervenções, disciplinar o conteúdo das relações que se entretecem, de molde a subtrair os cidadãos-consumidores das garras de um mercado ainda mais impiedoso porque sem rosto, antes com múltiplas máscaras que o tornam anónimo e prenhe de impessoalidades.

 Os planos, projectos e programas que de modo sincopado se seguem conferem-nos esta súmula, próxima dos intentos que se visa alcançar, como o proclamam os instrumentos editados pela Comissão Europeia e pelo Parlamento Europeu sem reticências.

 Donde, em momento em que a lume vem o Plano da Edificação de uma Europa Digital, associado a dois instrumentos normativos, a saber,

 o ALSD – Acto Legislativo da Sociedade Digital – e

o ALMD – Acto Legislativo do Mercado Digital ,

 e a Inteligência Artificial se reforça neste de molde a alcançar, a um dúplice título, um “eco-sistema de excelência” e um “eco-sistema de confiança”, curial será se revele a imperiosa necessidade de se erguer um edifício normativo que albergue, com suficiente disponibilidade, carga tamanha.

 Neste direito em construção (e em permanente desenvolvimento), realce para dois dos instrumentos relevantes susceptíveis de oferecer equilibrado suporte aos desafios ora suscitados:

 • a Directiva Melhor aplicação e Modernização da legislação de Defesa dos Consumidores (2019) e

 • a Directiva Conteúdos Digitais (2019)

 Mas torna-se necessária a adaptação de outros instrumentos normativos de molde a barrar determinadas práticas e a regrar certas condutas, a saber:

 a Directiva das Práticas Comerciais Desleais (2005) e

 a Directiva dos Direitos dos Consumidores (2011).

 Na sequência do Relatório em torno da Responsabilidade e da Segurança das Tecnologias de Ponta (e da Inteligência Artificial), em apenso ao Livro Branco, recentemente editado, impõe-se consequentemente a

 • revisão da Directiva Máquinas (2006);

 • adopção de actos delegados ao abrigo da Directiva Equipamentos de Rádio (2014); e a

 • revisão da Directiva Segurança Geral dos Produtos (2001) pela dessuetude dos requisitos de segurança ante a inovação e o desenvolvimento propiciado principalmente pela Inteligência Artificial.

 A criação de uma Identidade Electrónica Pública universalmente aceite – com base numa escolha dos consumidores, com o seu consentimento e a garantia de que a sua privacidade é plenamente respeitada em conformidade com o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) – pode oferecer-lhes a possibilidade de gerirem o acesso e a utilização dos seus dados de forma totalmente controlada e segura.

  Para obstar ao bloqueio geográfico injustificado, discriminatório para os consumidores em segmentos de mercado ao longo das fronteiras nacionais, prevê-se a revisão a breve trecho do Regulamento Bloqueio Geográfico (2018) dado à estampa em 28 de Fevereiro de 2018.

 A Estratégia Europeia para os Dados (2020), em curso, visa facilitar o direito efectivo dos indivíduos à portabilidade dos dados, ao abrigo do Regulamento Geral de Protecção de Dados (2016).

 E um ror de outros instrumentos se acham ainda na calha para as adaptações exigíveis:

 • Directiva Crédito ao Consumo (2008),

• Directiva Crédito Hipotecário (2014),

• Directiva Contas de Pagamento (2014) e

• Directiva Comercialização à Distância de Serviços Financeiros (2002), cuja revisão se antevê, a fim de reflectir a crescente utilização de meios digitais e a conferir cabal resposta aos desafios a que se vem aludindo.

 As normas que se editarem, no imediato (sem compassos de espera que comprometam os objectivos a que se tende) devem proporcionar aos consumidores uma adequada e ajustada compreensão dos produtos e a comparação das ofertas em linha e bem assim a sua criteriosa aceitação, estimulando destarte a inovação e a confiança dos consumidores.

 • O novo pacote de financiamento digital da Comissão Europeia, que inclui as Estratégias de Financiamento Digital e de Pagamentos de Pequeno Montante e as Propostas legislativas relativas aos cripto-activos e à resiliência operacional digital do sector financeiro (2020), visa assegurar que os consumidores e as empresas colham os benefícios da inovação, mantendo-se, ademais, protegidos ante a sua consabida vulnerabilidade.

 • Os atuais progressos em matéria de transformação digital reflectir-se-ão de análogo modo na Estratégia para o investimento de retalho (varejo), que deverá centrar-se nos interesses dos investidores individuais e se prevê para o primeiro semestre de 2022.

 • A Comissão alardeou recentemente iniciativas susceptíveis de concorrer para reforçar, aperfeiçoando, a protecção dos consumidores em matéria de pagamentos. Tais aspectos analisar-se-ão no quadro da recentemente adoptada Estratégia para os Pagamentos de Pequeno Montante na União Europeia (2020) .

 • Por último, a transformação digital exige que os consumidores desfrutem de uma forte literacia e competências digitais, a promover mediante consequentes planos e acções de educação e da formação numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida, como, de resto, se realça no Plano de Acção para a Educação Digital 2021-2027 (2020) e nas suas prioridades estratégicas, ora esboçado.

 Este vasto leque de iniciativas conferem à União Europeia uma posição ímpar, de real destaque na conformação da Sociedade Digital com os ingredientes próprios de um sistema em contínua mutação, aparelhados os instrumentos normativos que condicionem os propósitos malsãos das mega e cosmo-empresas que, movidas pelo superlativo escopo dos proveitos a qualquer preço, submetem, subjugam e escravizam aos seus objectivos últimos os cidadãos, afinal, de todo o mundo e do mundo todo.

 Que, ante a perspectiva de uma cooperação internacional, neste plano, difícil, mas fadada ao sucesso, se envidem esforços nas sete partidas do globo para se lograr uma estratégia comum e concretas medidas assistidas de coerção que sirvam em plenitude tais propósitos e resgatem a Humanidade (a comunidade transnacional de cidadãos-consumidores) das garras insaciáveis dos senhores do mercado.

  Mário Frota

apDC – DIREITO DO CONSUMO – Coimbra

  Glossário

Directiva: acto legislativo que fixa um objectivo geral que aos países da União Europeia cumpre alcançar. Cabe, no entanto, a cada um dos Estados-membros elaborar a sua própria legislação para dar cumprimento a tal objectivo mediante os instrumentos normativos neles previstos. É disso exemplo a Directiva dos direitos dos consumidores, que reforça tais direitos em toda a EU, através designadamente da eliminação de encargos e custos ocultos na Internet e da extensão do período de que os consumidores dispõem para se retractar de um contrato de compra venda (em dadas condições).

 Regulamento: acto legislativo vinculativo, aplicável em todos os seus elementos em todos os países da União Europeia, sem necessidade de transposição para o instrumentário normativo de cada um deles. Vale por si só e vigora, uma vez cumprida a vacatio legis que nele mesmo se estabelece. Exemplo: quando a União pretendeu garantir a aplicação de medidas comuns de salvaguarda aos produtos importados de fora da UE, o Parlamento (o Conselho) adoptou um regulamento.

 

 Projecto com o apoio do Fundo do Consumidor

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