“Comprei
um carro usado num ‘stand’ em Lisboa.
Compra
com garantia e tudo: revisão feita, histórico limpo, “estado irrepreensível”.
No test
drive tudo parecia perfeito.
Três
dias depois, luz do motor. Quatro dias depois, começou a cuspir fumo.
Reclamei.
Reacção: “Isso é desgaste normal, não está incluído na garantia.”
O carro
estava praticamente a morrer, mas para eles era absolutamente normal.
Levei a
uma oficina independente e disseram-me: “este problema já estava aqui antes da
compra.”
Ou seja,
venderam-me um carro com defeito oculto. E agora vão empurrando com desculpas,
a ver se eu desisto.”
Apreciada
a questão, eis o que se nos oferece dizer:
1. A conformidade dos bens com
o contrato é requisito essencial da
compra e venda; os bens terão de ser entregues em condições de ‘bom estado e
funcionamento’, tanto numa perspectiva geral e objectiva, como em
particular, de acordo com as
expectativas do consumidor: são conformes os bens que
1.1. Corresponderem à descrição, ao tipo, à
qualidade ... e às demais
características do contrato (DL 84/2021: art.º 7.º);
1.2. Forem adequados ao uso a que se destinem
(DL 84/2021: art.º 8.º).
2. Pelo facto de se tratar de bens usados, tal não significa
que, uma vez entregues, deixem de funcionar em razão de anomalias decorrentes
de ‘males do uso’ ou do ‘desgaste normal’... que alegadamente a garantia não
recobre!
3. Se negociada, a garantia legal dos usados não pode ser
inferior a 18 meses: o fornecedor responderá por qualquer não
conformidade (vício, avaria...) que ocorra nesse lapso de tempo (n.º 3 do art.º 12).
4. Nos 12 primeiros meses presume-se que a não
conformidade existia já à data da entrega; nos seis meses restantes cabe ao
consumidor a prova da sua existência, o que em tais circunstâncias é
praticamente impossível (DL 84/2021: n.º 3 do art.º 13)
5. O consumidor, ante a existência de um vício, avaria ou
defeito. tem prioritariamente o direito à reposição da conformidade pela
reparação ou substituição, à sua escolha
(DL 84/2021: al. a) do n.º 1 do art.º 15)
6. Se, como no caso, a não conformidade se tiver revelado logo
nos primeiros dias (nos 30 dias subsequentes à entrega), o consumidor goza de
um excepcional direito de rejeição: pode solicitar, de imediato, a resolução
do contrato, o que significa que lhe pode pôr termo, devolvendo-se o veículo e
restituindo-se-lhe o preço (DL 84/202: art.º 16).
7. O consumidor exercerá o direito de resolução (o de
pôr termo ao contrato) por carta, correio eletrónico ou outro meio susceptível
de prova (DL 84/2021: n.ºs 1 e 2 do art.º 20).
8. O exercício de um tal direito obriga: a que:
8.1. consumidor devolva os bens, a expensas do
fornecedor;
8.2. O fornecedor o reembolse do preço após a
recepção dos bens ou de prova da sua remessa (DL 84/2021: n.º 4 do art.º 20).
9. O fornecedor efectuará o reembolso, em 14 dias,
pelo mesmo meio de pagamento da transacção inicial, salvo se houver acordo
expresso em contrário sem custos adicionais para o consumidor (DL 84/2021: n.ºs
5 e 6 do art.º 20).
EM CONCLUSÃO
a. Os bens terão de ser entregues em condições de
‘bom estado e bom funcionamento’, ainda que de usados se trate: não pode ser
denegada a sua operacionalidade a pretexto de que o desgaste pelo uso exorbita
da garantia (DL 84/2021: art.ºs 7 e 8.º).
b. A garantia de usados é negociável, sendo que
não pode ser inferior a 18 meses (DL 84/2021: n.º 3 do art.º 12).
c. Nos 12 meses iniciais, presume-se que a não
conformidade (vício, avaria, defeito) existia já no momento da entrega; nos 6
meses remanescentes cabe ao consumidor a prova do facto (prova diabóilica) (DL
84/2021: n.º 3 do art.º 13).
d. Em caso de não conformidade, o primeiro dos
remédios é ou a reparação ou a substituição do bem, â escolha do consumidor (DL
84/2021: al. a) do n.º 1 do art.º 15)
e. Se, porém, tal ocorrer nos 30 dias iniciais, o
consumidor tem o direito de rejeição: pode desde logo pôr termo ao contrato por
meio de comunicação ao fornecedor por carta, msg. electrónica ou outro meio (DL
84/2021: art.º 16 e n.ºs 1 e 2 do art.º 20)
f. Efectuada a
devolução do bem, a restituição do preço tem de se processar em 14 dias
(DL 84/2021: n.º 6 do art.º 20).
Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
presidente emérito da apDC
- DIREITO DO CONSUMO -, Portugal